domingo, 16 de agosto de 2009

Não existe almoço grátis, a não ser que seja para mim

Outro dia, na minha aula de espanhol, a professora levou um texto do El País que falava sobre o Bolsa Família para que lêssemos e depois discutíssemos. Lemos rapidamente e ela perguntou a minha opinião sobre esse programa de transferência de renda do Governo Federal. Vocês sabem, eu tenho um opinião bastante favorável a ele. Após o meu discurso pró-Bolsa Família, a professora começou a desancá-lo, utilizando velhos argumentos: isso é bolsa-esmola; está ajudando a criar vagabundos; quanto menor o Estado melhor; o Estado não tem que se meter nem na vida das pessoas nem na economia; o Estado é essencialmente corrupto; o Estado é feio, bobo e tem cabeça de melão...

Então eu contra-argumentei e a discussão se prolongou até o final da aula, claro que sem levar a lugar nenhum, pois são inconciliáveis visões de mundo tão diferentes como a minha e a dela. Mas esse papo me deixou muito irritado, vocês podem imaginar.

Aí, finda a aula, a professora perguntou:

- Bruno, você é urologista, né?

- Quase, sou residente ainda..., eu respondi.

- Ah tá, é que eu tô com um cálculo no rim, tenho até um raio-X aqui comigo... Quer dar uma olhada?

Eu pensei: "olha, não existe almoço grátis...", mas respondi: "claro, pega lá, deixa eu dar uma olhada".

Aí eu olhei o raio-X, fiz as orientações e disse: "acho que você deveria fazer um ultrassom, mas já te adianto que provavelmente você vai ter que operar". E ela: " É, eu já sabia, meu médico disse a mesma coisa que você" e depois perguntou:

- Você opera pelo SUS?

- Eu atendo e opero pelo SUS.

- Tem como eu marcar uma consulta com você?

Eu quase falei: "Uai, mas o Estado não é feio, bobo e tem cabeça de melão?", mas disse: "Claro" e a orientei sobre o que ela teria que fazer para marcar a consulta.

***
Essa historinha é só para ilustrar o espírito da nossa classe média. Ela pensa, normalmente papagaiando o que lê nos jornalões ou na Veja, que o Estado é a encarnação do mal. Acha que políticas de distribuição de renda só servem para "criar vagabundos" e são o "maior programa de compra de votos do mundo"; que trabalha muito para sustentar um Governo gastador; que o Estado é essencialmente corrupto, então sonegar impostos passa a ser defensável ("Vou pagar imposto pra quê? Para eles roubarem?)... Mas, curiosamente, acha que o Estado deixa de ter cabeça de melão quando oferece a ela alguma bolsa de estudos ou quando precisa usar serviços do SUS, por exemplo (tenho uma colega que é neoliberal militante, participou até de passeata pelo fim da CPMF, e não se constrange em pegar medicações fornecidas pelo SUS para tratar sua hepatite C crônica. Com isso ela economiza mais ou menos 2 mil reais por mês. Afinal, "o Estado tem que servir para alguma coisa, né?") . E mesmo pede mais Estado quando é assaltada ("Tem que investir mais em segurança!") ou quando seu filho se forma e não encontra trabalho ("Pô, será que não vão abrir outro concurso público?").

Essa é a nossa classe média e eis o seu lema: não existe almoço grátis, a não ser que seja para mim.

33 comentários:

Sergio Telles disse...

90% das pessoas não fazem noção de quanta coisa bancada pelo Estado possuem. E nossa mídia trata sempre de enfatizar "pagamos tanto e recebemos nada...", pois tudo que se privatiza, fica muuuuuuuuito mais caro e pior, pode-se ver luz, telefone, entre outras coisas privatizadas.

Só o Estado tem a capacidade de criar sinergias e escala suficiente para, sem almejar lucros, oferecer serviços para todos, basta uma gestão que queira fazer isso, e não um "choque de indigestão".

Excelente seu texto e manda essa tua professora ir operar no particular, pra ela ver o quanto vale o Estado.

idelber disse...

Notável post! Meus parabéns, Bruno. Recomendei o texto no Twitter.

Iza disse...

Muito bom o post.

Jéssica Santos disse...

Adorei o post, e vc colocar o xingamento infantil que o Estado é "feio, bobo e tem cabeça de melão?" foi um belo toque, nos lembra o quão infantis somos ao acreditar piamente na grande mídia.
Parabéns

Anísio FC disse...

Aqui em São Paulo grande parte da população que se achava ultra-liberal acabou aprovando a lei mais intervencionista dos últimos tempos...
A lei antifumo virou uma unanimidade ao povo paulistano, mas mais por causa do autor da lei!

Emerson Damasceno disse...

Muito bem observado...
Pena que tantos ainda teimem em aderir, por inércia e omissão mesmo, ao discurso da total falência do Estado que somente interessa a quem dele se aproveita. Sem ser muito ideológico, aliás, quem foi mesmo que resolvou a tal "Crise do Séc. XXI", foi Estado ou mercado e sua mão invisível (e boba?) :)

Emerson Damasceno disse...

Muito bem observado...
Pena que tantos ainda teimem em aderir, por inércia e omissão mesmo, ao discurso da total falência do Estado que somente interessa a quem dele se aproveita. Sem ser muito ideológico, aliás, quem foi mesmo que resolvou a tal "Crise do Séc. XXI", foi Estado ou mercado e sua mão invisível (e boba?) :)

maria disse...

Concordo com o que você diz, apesar de não gostar do Bolsa Família.

Ariadne Jacques disse...

Parabéns pela coerência dos argumentos! Os neoliberais são tão infantis, que a única saída é a ironia! Povo feio, bobo e dentro da cabeça suco de melão.

SambaClub disse...

Parabéns pelo post. É incrível como essa classe média rançosa e manipulada atrapalha a engrenagem do país e dissemina informações tão erradas.

Marisps disse...

Perfeito e didático! Parabéns!

Fausto Salvadori disse...

Bom texto. E, só para lembrar, o Estado subsidia o papel dos jornais que metem o pau na presença estatal na academia.

Lucimara disse...

e tem aquela do sujeito que, depois de fazer um transplante de célula-trono na usp de ribeirão, sem gastar um tostão, e se ver livre da sua esclerose múltipla, escreveu assim no facebook: o pacaembu é pro futebol, não é hotel. mas que coisa, hein!!

B disse...

A coisa é que no seu post, depreende-se que querer que o estado aumente ou diminua é algo totalitário, quando não é. Qual a contradição em querer que o estado aumente de tamanho em segurança e diminua de tamanho nos cabides de emprego em Brasília? Além disso, é preciso ser contra o estado-saúde quando se é contra o estado-antifumo? Antifumo mexe diretamente com a sua liberdade, mesmo que ela seja controversa, enquanto fornecer tratamento médico está do outro lado da moeda.

Sorry. Eu mesmo não vejo problema no discurso e na atitude da sua professora.

girino disse...

Vamos ver se eu entendi! Eu PAGO por um serviço (a manutenção do estado) e:
1- Não posso reclamar que o serviço está insatisfatório e/ou caro.
2- Não posso usufruir do serviço, caso reclame, mas tenho de continuar pagando.

É isso? Você para de usar seu telefone/internet/tv a cabo quando o serviço fica ruim, mas continua pagando? Ou continua usufruindo, mesmo achando que está caro? Que está ruim? (Ou mesmo cancela, pra não ter de pagar mais)

Que incoerência a sua: se reclamou, não pode mais usar, mas tem de continuar pagando!

Sinto muito, tem MILHÕES de argumentos pra defender políticas assistencialistas de governo, mas ESSE foi o mais burro que eu já vi!

Paulo Rená da Silva Santarém disse...

Girino,

você só não entendeu.

O argumento não é reclamar de um serviço bem ou mal prestado: ela disse que ele não deveria ser prestado.

Ele não está debatendo a questão financeira, mas a perversidade dos argumentos utilizado para negar a assistência social a quem dela precisa.

Agora se vc não se incomoda de ver um outro ser humano sem ter o que comer e prefere ver ele sem nada em nome de uma "liberdade" de competir com vc no mercado de trabalho para poder ganhar o próprio sustento, a consciência é toda sua.

Lucas Santos disse...

Aconteceu algo parecido comigo.

Eu e um amigo conversando sobre o Bolsa Familia, ele disse: "O governo dá uma esmola de 50 reais pro mendigo e compra o voto dele".

O que meu amigo esqueceu é que, uma semana antes, para lhe ajudar e sem ele pedir, eu havia lhe dado uns mesmos 50 reais... q ele aceitou de bom grado pq, assim como o mendigo, ele não tem uma vida luxuosa e de fartura morando aki em SP-capital - embora seja um "playboy" se comparado ao morador de rua.

Deu uma vontade de falar: "Pq o mendigo venderia o voto? Qdo eu te dei 50 reais pra te ajudar vc não vendeu seu voto pra mim". Mas n falei nada.

É a seguinte maneira de se enxergar seus concidadãos:
O outro vende o voto.
Eu não.

O outro é vagabundo e quer mamar nas tetas de outrem.
Eu não.

O outro tem que se esforçar e vencer na vida.
Eu posso ter o privilégio de ser ajudado.

O outro é malandro.
Eu sou honesto.

Portanto: pra mim tudo.
Pros outros, nada.

Como diria meu professor de história: "Liberal com a irmã dos outros, com a minha sou conservador".

RLocatelli Digital disse...

Olá, Bruno!

Uma crítica construtiva: em vez de você engolir em seco e ficar quieto tinha mais é que jogar na cara dela a hipocrisia que ela estava demonstrando.

Você que é médico sabe que ficar quieto demais em certos momentos pode causar gastrite.

Ariadne Jacques disse...

Seu argumento tem todo o meu apoio. Aqui nessa parte existencialmente miserável do mundo, os grupos que detêm algum tipo de vantagem, mesmo as mais insignificantes, não querem nem ouvir falar em socialização dos privilégios. E quando a coerência foje do argumento simplório, eles chamam os outros de "burros". É assim, tudo na mais alta pobreza da expressão verbaL.

Camila disse...

Oi Bruno,

Só pra te dar os parabéns e te agradecer pelo texto fundamental - estou pensando em imprimi-lo para carregar comigo na bolsa e educamente entregá-lo para a próxima pessoa que me vier com a ladainha do pobre e do peixe. Sabe qual é? Aquela que diz que "o governo é do mal porque dá o peixe mas não ensina o pobre a pescar". Pois é.

Lucas Santos, seu comentário está perfeito. Você, como o Bruno, conseguiu ultrapassar as ideologias não-pensadas e focalizar a mesquinharia de sentimento que necessariamente as acompanha. Obrigada também.

girino disse...

@Paulo Rená da Silva Santarém:

Qual a diferença entre reclamar que não deveria ser prestado PELO GOVERNO (e não deixar de existir, nunca vi ninguém argumentando que médicos deveriam ser colocados no paredão) porque o governo é ineficiente, e reclamar que o serviço é ruim?

O argumentro dele é bem esse sim: se reclamar, não pode usar. Se usar não pode reclamar. Que é um argumento burro, já que somos obrigados a pagar impostos, usando o serviço ou não.

Como eu disse, existem MILHÕES de argumentos pra defender o assistencialismo, o seu é um válido (apesar de fazer insinuações passivo-agressivas sobre meu sistema de valores pessoal), o dele não!

Ariadne Jacques disse...

Só por você considerar o argumento do outro "burro", (ativo-agressivo) o seu não deve ser levado em consideração, em tempo algum.

girino disse...

@Ariadne Jacques

Essa sua argumentação é uma falácia bem conhecida e documentada (tem até na wikipédia, procure), e se chama argumento ad-hominem.

Só respondi porque acredito que isso pode servir pro seu crescimento pessoal, porque, na verdade, não merecia resposta.

Bruno disse...

Muito obrigado a quem leu, gostou, elogiou, passou para frente, divulgou. Muito obrigado mesmo. Fiquei realmente lisonjeado com a repercussão extremamente positiva que teve esse post.

Agradeço também quem discordou de mim e tentou discutir civilizadamente.Valeu.

Aos mal-educados e deselegantes: não os considerarei meus interlocutores até que aprendam a discutir ideias e opiniões com menos agressividade e mais argumentos consistentes. Ah, também é bom, sei lá, fazer um curso rápido de interpretação de texto. Talvez isso ajude.

Um Abraço

Paulo Rená da Silva Santarém disse...

Bruno e Ariadne, a busca pela interlocução é um exercício, pensemos bem: se e possível dialogar com pessoas ocupadas em desestabilizar uma conversa, é possível conversar com qualquer pessoa.

Unknown disse...

Olá Bruno, interessante seu texto. Realmente a maior dificuldade, que temos hoje é de conscientizar a população, e temos profissionais como professores, médicos, até mesmo jornalistas que fazem o papel de acreditarem na mídia, e nem sequer tem o interesse de visitar os órgãos públicos, falar com os profissionais e avaliar os serviços prestados para a população. E quando surge a necessidade, ainda a pessoa pode despertar de seu looooongo sono.
Esse texto merece destaque e postamos em nosso blog. Veja lá.
Gde Abraço
Márcia

Hugo Albuquerque disse...

Bruno,

Tive dois dias muito corridos e infelizmente só li este seu belo post agora. É até difícil comentar algo a respeito, mas você matou a charada do que é essa nossa "classe média" - e de como a alternativa serrista está fadada ao fracasso, seja ele eleitoral (mais provavelmente) ou no próprio poder: Eles podem não fazer questão do "almoço grátis" para o irmão, mas reagirão quando não tiverem mais o seu. Espere e verá.

abraços

Bruno disse...

Grande Hugo! Só espero não ter que ver Serra no poder, meu caro.

Carino Schlemihl disse...

No blog do Giz, que fez referência ao seu texto, fiz comentários mais demorados (bem demorados, até!) ao que você escreveu. Talvez por não ter alinhamento nem à esquerda, nem à direita, e por julgar que tucanos fazem boa figura no mato ou em gaiolas (ai de mim, ambientalistas!), suponho que tenha dado opiniões que, sem repetir as suas, desenvolvem-se em linha paralela, e também outras que valem como ressalvas e contrariam certa ênfase, certo tom, no que você disse. Apenas como um adendo do que está lá,prefiro declinar aqui um aspecto menos simpático - e que peço seja tomado em conjunto com o que disse lá: não nos esqueçamos que também são a classe média a maior parte dos professores universitários - não os tolos, como você referiu, mas também os bons - assim como a maior parte dos jornalistas, a maior parte dos profissionais liberais, inclusive a melhor parte dessa maior parte.Serão eles menos significativos como representantes dessa classe, se sua voz é tao audivel quanto a das maiorias inconsequentes? O seu discurso de liberdade e igualdade é menos burguês do que a fala tacanha dos incoerentes e egoistas?
Se por obra de nosso sistema social, um contingente mais que respeitável de filósofos, médicos,físicos, poetas estão assentando blocos e varrendo a rua, não deixa de ser verdade que a classe média não é apenas o público assinante da Veja. Cabe distinguir que se há uma classe média boçal e irresponsável, é também necessário admitir que nossas mais importantes vozes de oposição vêm de lá. Podem ser minoria absoluta, mas não deixam de ser burgueses, ao menos em origem - tao pequenos-burgueses quanto os que você, e eu, censuramos. Enfim, a classe média é parte muito significativa deste país, desde o esquecido tenentismo.

Oportuno e interessante seu texto - e realmente já me vi detido exatamente sobre essa questão. Mas, com lealdade, não concordo com tudo.

Carino Schlemihl disse...

Não é meu dia de ser sucinto, definitivamente... perdoe a prolixidade, sim?

Carino Schlemihl disse...

Não é meu dia de ser sucinto, definitivamente... perdoe a prolixidade, sim?

Mayara Arend disse...

Olá!
Bom, tenho a mesma opinião da "classe média" ou da sua professora... Mas ao menos me isento do resto - com exceção que meu pai é militar e por isso possuo seu convênio médico, não utilizo nada do governo (e mesmo nesse caso, quem trabalhou mais de 30 anos lá e "cobriu" esses valores foi meu pai)... Educação, até a segurança tenho particular (empresas para reforçar a segurança)... Não que não tenha tentado - e é justamente isso que me fez pensar que o governo tem algo de errado - nunca pude pagar nada, mas tive que me virar enquanto via muita gente com mais condições conseguir o que eu precisava por ter pessoas que lhes concediam "favores" (bolsas na faculdade, medicamentos, etc etc)...
Não pretendo dar parte do meu salário para o governo, porém também não pretendo pedir nada dele, nem agora, nem no futuro. Daí vale, né? hehe

Gunnar disse...

Girino em 16 de agosto de 2009 23:28 resumiu tudo. Não há incoerência nenhuma na postura da professora. Já que está pagando, mesmo contra a vontade, que use, ué!

Seria hipocrisia se ela estivesse almejando um cargo público (que é o contrário: ser pago pelo estado), o que não parece ser o caso.

E você mistura alhos com bugalhos ao falar da segurança pública, por exemplo. Polícia não é intervencionismo, é garantir o estado de direito e o respeito às leis.