Há cerca de um mês, eu escrevi um post em que citei Roberto Damatta e seu livro mais conhecido, “Carnavais, Malandros e Heróis”. Voltemos a eles.
Neste livro, o autor apresenta a tese de que há uma diferença básica na constituição das sociedades tradicionais e das sociedades modernas burguesas. Aquelas são constituídas por pessoas, estas, por indivíduos.
Numa tribo indígena, um cara que nasceu filho do pajé não é tratado da mesma forma que o filho de um guerreiro. Na Índia, a lei que vale para um Dalit não é a mesma que vale para um Brâmane. Nestas sociedades tradicionais, existem pessoas que, juntas, formam o todo. Já nas sociedades modernas burguesas espera-se que todos os indivíduos sejam submetidos às mesmas leis, independentemente se ele é filho do Sarney ou se tem um carro do ano.
Claro que essa divisão não é uma coisa tão rígida assim. No Brasil, por exemplo, a dialética indivíduo-pessoa ocorre a todo momento. Veja, quando estou em casa, eu sou uma pessoa: o filho, o pai, o irmão... Ao colocar os pés na rua, imediatamente me torno um indivíduo. Num ônibus lotado sou um indivíduo ladeado por outros tantos iguais a mim; quando chego ao meu trabalho, sou tratado como uma pessoa. No jargão policial: “O indivíduo roubou o carro e fugiu”. Mas quando o bandido é um banqueiro ninguém diz que um indivíduo tentou subornar um policial federal. Os exemplos abundam. A pessoa tem relações, privilégios, um papel definido e não está submetida às mesmas leis que os indivíduos. “No Brasil, (...) o sistema é dual: de um lado, existe o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado no indivíduo), modelado e inspirado na ideologia liberal e burguesa. É esse sistema de leis, feito por quem tem relações poderosas, que submete as massas”, diz Roberto Damatta.
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No dia 2 de outubro, dia em que o Rio venceu a disputa para sediar os jogos olímpicos de 2016, na hora do anúncio, eu estava no aeroporto de Brasília, vidrado na televisão. Ao meu lado, uma multidão se aglomerava na ala de alimentação do aeroporto.
Lula deu uma linda entrevista ao repórter Pedro Bassan da Globo. Todos, emocionados, ficaram em silêncio para ouvir o presidente. Muitos com lágrimas nos olhos, inclusive eu.
A certa altura, o presidente disse: “Esses país...”. Um engraçadinho não perdeu a oportunidade de espezinhar: “hahaha. Esses país! Não é esses países, não, gente. É “esses país”. Esse é o nosso presidente!”
Ninguém deu muita bola a esse comentário, a não ser um garoto mal saído das fraldas, que deu uma risadinha. Mas eu fiquei com aquilo na cabeça. Por que será que alguém, num momento daquele, faria aquele comentário? Não fazia sentido. Todos emocionados, comemorando, felizes, e o cara resolve fazer uma piadinha com um banal erro de português do presidente!?
Note que ele fez questão de dizer: “Não é esses países, não, gente. É ‘esses país’”, como que dizendo: veja como eu sei como é o certo.
Pareceu-me que, na esteira do preconceito lingüístico, o subtexto da piadinha do cara era: Eu sou uma pessoa, não um indivíduo, um pé-rapado gentinha que vota nesse analfabeto. Quando confrontado por qualquer porteirozinho de prédio, eu posso dizer: “Você sabe com quem está falando?” Sou cunhado do chefe de gabinete do deputado fulano, sou chamado de doutor, o gerente do meu banco me conhece pelo nome. Uma pena que um monte de indivíduos vote nesse cara que não sabe que o certo é “esses países”...
Como todos nós sabemos, o preconceito lingüístico é primo-irmão do preconceito social. Só pobres, favelados, Zé manés dizem “esses país”. E devem ser ridicularizados por isso, esses indivíduos.
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
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6 comentários:
Boa análise, Bruno.
Não é sempre que dá para comentar, mas os textos por aqui estão ótimos meu caro.
Um abraço
João,
Muito obrigado,meu caro.
Um grande abraço
Olá Bruno,
Gosto muito dos seus textos, apesar de não concordar com o conteúdo de alguns deles. O erro do presidente, na minha opinião, não foi banal. Eu não o teria corrigido, mas tampouco teria ignorado.
Principessa,
Que bom que você lê e gosta do que eu escrevo,mesmo muitas vezes discordando das minhas opiniões.
Um abraço
Como professora de inglês, estudei e li livros pra aprender como e, principalmente, quando se corrige um aluno que erra alguma coisa. Uma das primeiras coisas que a gente aprende é que há mistakes (erros) e slips (deslizes). E que corrigir um aluno que diz "We is" ao invés de "We are" é pura falta de tempo. Só interrompe o fluxo de pensamento, porque o aluno tá cansado de saber a conjugação do verb to be. Então a gente aprende que os erros graves são aqueles que interrompem a comunicação. Em alguns casos, o aluno dizer She ao invés de He pode gerar dúvidas, e aí é um erro grave, que pede esclarecimentos. Mas, no caso do Lula, vejamos... Será que o "Esses país" é um erro grave ou um deslize? É realmente necessário corrigi-lo ou quem faz isso só quer passar atestado de superioridade moral e intelectual? Em empolguei! Vou escrever um post sobre isso!
Adorei o seu comentário, Lola, e concordo inteiramente com ele. Vou esperar ansiosamente por seu post.
Bj
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