quarta-feira, 23 de setembro de 2009

O IPEA, o antropólogo e o capitalismo de compadres

O IPEA divulgou um estudo que mostra que a proporção de desempregados entre pobres que estudaram 11 anos ou mais é 3,7 vezes maior que entre pobres analfabetos, nas regiões metropolitanas do Brasil . Sobre esse resultado, Marcio Pochmann, presidente do instituto, deu as seguintes interessantes declarações; “É estranha a interpretação de que quanto maior a escolaridade (do trabalhador), maior é a chance de emprego, porque isso não ocorre com os mais pobres”. E completou: “Há uma barreira, do ponto de vista da inserção, para trabalhadores pobres, apesar da escolaridade. É o chamado QI, ou quem indica. Isso não ocorre com os menos escolarizados, porque esses não dependem das relações sociais para conseguir emprego”.

É aquela velha história: o problema do pobre é que seu amigo também é pobre.

Esse estudo do IPEA confirma com números o que Roberto DaMatta teorizou me “Carnavais, Malandros e Heróis”: “No Brasil, o ato de individualizar-se pode ser equivalente a uma renúncia do mundo, mas (...) o indivíduo é também aquela entidade social que pertence ao mundo anônimo das massas. (...) Trata-se (...) de recusar um poderoso sistema de relações pessoais. E isso, no caso brasileiro, conduz à rejeição da família, do compadrio, da amizade e do parentesco, deixando quem assim procede na situação de certos migrantes nossos conhecidos: inteiramente submetidos às leis impessoais da exploração do trabalho e ainda aos decretos e regulamentos que governam as massas que não têm nenhuma relação. Por serem assim é que podem ser exploradas através de um conjunto de leis impessoais. Quando se trata de rejeitar o mundo, rejeita-se no Brasil o universo das relações pessoais, para cair de quatro no universo das leis impessoais, essas regras que esfolam e submetem todos os desprotegidos (ou seja, gente sem relações, gente indivisa)”. E continua: “No Brasil, (...) o sistema é dual: de um lado, existe o conjunto de relações pessoais estruturais, sem as quais ninguém pode existir como ser humano completo; de outro, há um sistema legal, moderno, individualista (ou melhor: fundado no indivíduo), modelado e inspirado na ideologia liberal e burguesa. É esse sistema de leis, feito por quem tem relações poderosas, que submete as massas. (...) A consequência disso é uma estrutura dual que tende a autoalimentar-se na dialética da lei draconiana e impessoal e do sistema de relações pessoais que permite, por causa disso mesmo, saltar a regra e o decreto. Daí a profunda verdade sociológica do ditado: “Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo!” Dir-se-ia (...) que: “aos bem relacionados, tudo; aos indivíduos (os que não tem relações), a lei””.

Meus amigos, vamos trocar tudo isso em miúdos: o estudo do IPEA confirma o que escreveu Damatta há mais de três décadas e prova por A + B que nosso capitalismo é realmente de compadres.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Uma espécie decadente: a velha classe média

Este blog sempre foi muito crítico ao "espírito" da nossa classe média. Como muitos navegantes têm dificuldade em identificar uma ironia ou uma figura de linguagem e para evitar mal-entendidos, antes de mais nada acho melhor deixar uma coisa clara: minhas críticas não são dirigidas à classe média em si, mas à classe média way of life. Com essa explicação, espero que não apareça ninguém aqui dizendo: "Pô, isso é preconceito contra a classe média!"

Bom, tudo explicadinho nos seus miiiiiínimos detalhes, vamos ao que interessa.

Neste fim de semana estive em Brasília e trouxe para vocês um exemplo de um espécime que abunda na asa sul do plano piloto e na região do Savassi e Belvedere, aqui em BH. Lendo uma revista semanal distribuída gratuitamente na Capital Federal, deparei-me com essa "carta ao editor":

"Lula se dispõe a fazer compra faraônica de armamento antibélico para defender nossas riquezas de invejosos inimigos hipotéticos.

Bilhões serão gastos e debitados nas contas de todos nós...

Bem mais modesta, só quero poder comprar uma caixinha de Tamiflu para defender meus netos de um inimigo certo e conhecido, e não posso.

Dinheiro para isto eu tenho... não consigo é o remédio, para tê-lo em casa e assim garantir que não vou chorar a perda irreparável de um ente querido (...)"

Veja que gracinha, ela quer só comprar um remedinho pra estocar em casa e usar na eventualidade de um netinho precisar... Dinheiro para isso ela tem, ora essa! Não importam os outros, "a gentinha e a gentalha", o que interessa é ELA se sentir segura.

Notem, esse discurso comprova que o Ministério da Saúde acertou ao comprar todo o estoque de Tamiflu que a Roche ofereceu ao Brasil e manter essa medicação disponível somente no serviço público de Saúde, onde TODOS têm acesso (ter urticária de enfrentar fila ao lado de "gentinha e gentalha" é outra história). Se o MS liberasse a venda de parte do estoque nas farmácias e a pandemia de gripe suína fosse tão catastrófica como alguns apregoavam, certamente faltaria medicação para a população mais pobre, já que, por causa do alarmismo causado pela imprensa, ocorreria uma "corrida às farmácias"e esse Tamiflu seria estocado pela turma do "dinheiro para isso eu tenho".

Este humilde blog gostaria, portanto, de parabenizar o ministro José Gomes Temporão e o Ministério da Saúde por ter tido coragem de enfrentar a imprensa oposicionista e a parte da população por ela doutrinada e, sem populismo, ter feito a coisa certa.

***

Como eu disse, estive em Brasília neste fim de semana. Estava acertando algumas coisas, pois planejava me mudar para lá no início do ano que vem. Como fiquei sabendo anteontem que fui aprovado no concorrido concurso do Hospital das Forças Armadas, esse resto de ano vou ficar na ponte aérea BH-BSB.

Pois bem, na sexta a noite fui jantar com um dos meus futuros patrões e sua esposa. Na mesa, além deles, estávamos eu, minha esposa, meu pai e minha mãe. Conversa vai, conversa vem, eles começaram a falar de política.

Então a esposa do meu futuro patrão começou a destilar aquela velha cantilena: "Eu fiquei sabendo, por fonte segura, que Lula vive bêbado"; "Você acha que eu votaria em quem não estudou? Assim eu desvalorizaria o meu currículo"; "Você viu aquela reportagem da Veja? Aquela sobre MST, que foi capa da revista? Pois é, um absurdo esses vagabundos..."; "O bolsa família só serviu para deixar os pobres preguiçosos."... E por aí foi. Eu fiquei calado, muito incomodado com aquilo, mas fingindo que não estava ouvindo. Então ela se virou para minha esposa e perguntou:

-Você vai votar na Dilma?

-Vou - respondeu a minha esposa.

-E você? - perguntou para mim.

- Também - respondi convicto.

Então ela percebeu que o terreno não lhe era inteiramente favorável, mas mesmo assim ela tentou uma cartada final:

- Você viu o que a Dilma fez com aquela moça da Receita? Você viu que absurdo? Você viu?

- Não, não vi. O que ela fez? - eu disse ironicamente.

- A a a... e e e.. ( gaguejando) Dilma pressionou ela... Você não viu isso?

- Você caiu nessa? Dilma e Lina não estavam na mesma cidade no dia que ela alega ter se encontrado com a ministra. Você acha que Dilma e Lula a desafiariam tão enfaticamente se não tivessem certeza?

- Não sabia desse negócio de que elas não estavam na mesma cidade... Mas tem muita corrupção por aí... Bom, é melhor pararmos de falar nisso , pois nós nunca entraremos num acordo - disse ela.

O assunto acabou aí. Não foi muito prudente eu ter contestado a mulher do meu futuro patrão, mas, vocês hão de convir, foi ela que puxou a conversa comigo.

***

Quando ouço discursos como aquele da "carta ao editor" e esse da leitora da Veja, eu fico extremamente desanimado. Fico realmente abatido, triste. Mas é só eu parar para pensar um pouco e logo me animo. Penso que essa velha classe média fala muito alto, faz barulho, mas é minoritária, não apita mais nada. Eles são o quê? 5? 3? 8% da população brasileira?

Está cada dia mais evidente, apesar de muitos ainda não terem notado, que os 8 anos de governo Lula mudaram a composição da sociedade brasileira. A expansão do crédito consignado, o ProUni, o aumento real do salário mínimo e o Bolsa Família proporcionaram a ascensão de uma nova classe média, a "nova elite morena", como diz Mangabeira Unger. Ela é mais numerosa do que a velha classe média, não tem os seus preconceitos e reconhece os avanços do Brasil durante os anos Lula. Ela não é ouvida pela mídia corporativa, mas sua voz é sussurrada nas esquinas e nos bares. Então, aquele negócio de que a decisão do voto sai lá do andar de cima e vai formando a opinião da turma da base da pirâmide já era. A nova classe média funciona como uma barragem e ela vai ser determinante para a inevitável vitória de Dilma. Ou alguém acha que a base da pirâmide engole o papo da elite e da velha classe média?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

O ministro que está se saindo melhor que a encomenda

Veja aí o vídeo em que o Ministro do Meio-Ambiente Carlos Minc defende, pra lá de descontraidamente, durante um show da banda Tribo de Jah, uma bandeira pela qual este que vos escreve já se bateu muito: a descriminalização do usuário de maconha. Na verdade, eu sou a favor da legalização e normatização da sua comercialização, mas a descriminalização já seria um ótimo começo.

Ah, e antes que alguém venha me chamar de maconheiro, eu já me adianto: "fumei, mas não traguei" ;-)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Já era hora: minha opinião sobre a candidatura Marina Silva

A Flávia e o Alexandre Nodari escreveram posts intrigantes sobre a candidatura Marina Silva. Eles me fizeram refletir bastante, mas não mudaram significativamente o que eu já pensava. Resolvi trazer para cá um comentário que eu fiz lá no mundo-abrigo para que vocês tenham conhecimento da minha opinião sobre esse assunto:

Flávia,

Você tocou em tantos pontos interessantes aqui que eu não sei se vou conseguir comentar todos, e esse assunto Marina rende tanto...


Antes de qualquer coisa, gostaria de saber se, para você, essa mudança de paradigma que representaria a candidatura Marina seria devido à candidatura em si, ao seu discurso e tal, ou a um eventual governo verde?

Bom, Flávia, a mensagem principal que você me passou aqui é que você acha que algumas críticas à candidatura Marina são precipitadas e que seria necessário dar mais tempo ao tempo pra saber qualé a dela. So far...

Quando surgiu esse papo de que Marina sairia do PT rumo ao PV pra se candidatar à presidência, logo me vieram à cabeça dois nomes: Soninha Francine e Ralph Nader. A primeira pelo fato de ter abandonado seu partido de origem e ingressado em outro com posições políticas duvidosas, após ter recebido a promessa de que seria candidata a um cargo majoritário, o que não ocorreria no partido que ela deixou; o segundo por ter sido um candidato com discurso bonitinho, bacaninha e moderninho que acabou servindo à direita, como disse o Maurício aí acima. Têm elementos que a aproximam desses dois personagens - esses que apontei acima - como têm também outros que a diferenciam. O lance dela com o PV é muito diferente do de Soninha com o PPS, pois ela terá metade dos votos do diretório do partido (e além do mais, Marina não é Soninha, vamos combinar) . E, no Brasil, temos segundo turno, o que não acontece nos EUA. Então, mesmo que a candidatura de Marina sirva, à primeira vista, muito mais à direita do que à esquerda, o voto que ela roubaria de Dilma no primeiro turno, voltaria para a petista no segundo (e eu não sei se será de Dilma que ela roubará mais votos.Eu tenho dito e apostado que Heloísa Helena será quem mais perderá votos: parte do eleitorado desiludido, do indignado, do "cansado" e do evangélico). Isso está muito claro pra mim.

Vamos à prática. Se Marina for candidata sem uma aliança surpreendente (sei lá, vai que ela seduz o PMDB, já pensou? Ou se alie ao PSDB e vai ela na cabeça da chapa e Aécio de vice. Convenhamos que essas hipóteses são pra lá de inverossímeis) ela terá 2 minutos diários de tempo de TV, pouco dinheiro e pouca estrutura partidária – embora sua candidatura possa empolgar militantes -, o que significa que não irá para o segundo turno. Somando isso ao fato de que o segundo turno ocorreria de todo modo, entre Serra e um candidato governista, provavelmente Dilma, eu concluo que estamos gastando tempo, energia, tinta e bytes com um assunto que não terá tanta importância prática assim. Aliás, terá, indiretamente, se essa candidatura for o que faltava para estimular Ciro a concorrer à presidência. Aí sim terá importância, só não tenho certeza se isso será bom ou ruim para Lula e o PT.

Do ponto de vista prático, acho que a única importância que ela teria seria essa, mas, obviamente, do ponto de vista simbólico são outros quinhentos, como você e o Alexandre (naquele post que você linkou) bem disseram. O respeito ao meio ambiente e reflexões sobre os modos de produção e consumo (o desenvolvimento sustentável e tudo o mais) entrarão na agenda e deverão constar do programa de todos os candidatos. Mas não acredito que em curto prazo esses assuntos sejam enfrentados, pois acho que os anos Lula abriram portas que levam o Brasil para outra direção: expansão econômica baseada em crescimento do mercado interno, em decorrência do aumento real do salário mínimo, em programas de distribuição de renda e em crédito consignado (tudo isso com não desprezível impacto na diminuição das desigualdades sociais); aumento da importância do petróleo na nossa economia; crescimento das exportações (espero que o próximo governo dê preferência à agricultura familiar em detrimento do agronegócio)...

Bom, pra finalizar esse meu comentário tão grande quanto confuso, a minha torcida é para que essa candidatura Marina sirva para lançar ideias “verdes” que sejam utilizadas por Dilma em seu governo. Mas não acredito em grandes mudanças (de paradigma) enquanto o quadro político-partidário continuar o mesmo. Podemos ter melhoras, ajustes, mas não superação do nosso modo de produção e consumo. Acho que isto é o máximo que a esquerda pode esperar, pelo menos a curto prazo, de herança da candidatura de Marina Silva: alguns tons verdes em um governo vermelho desbotado. Mas isso não é motivo pra muita tristeza: a outra opção é muito pior.